A máscara que cobre o seu rosto
O vento gelado sentido do Sul não é visto com bons olhos, principalmente vindo da região próxima ao monte Jangsan. Pisar em locais alagados não é lá muito agradável, mas infelizmente a trilha para evitar as proximidades do monte acaba levando a algumas terras úmidas e de movimentos cuidadosos. Os zoris ficam bem enlameados e as pontas dos quimonos tendem a ficar manchadas pelo contato com a terra embebida em lama.
Isso para as crianças só se torna um motivo a mais de diversão. Enquanto os adultos buscam se esconder das gotas fortes e rápidas da chuva que cai em Kungyi, um pequeno vilarejo que sobrevive da produção de arroz, as crianças correm puxando umas às outras para a chuva torrencial que cai.
Já os adultos questionam entre si sobre a chuva fora de época na região, aquele poderia ser um aviso de Mori no Okāsan de que algo pode estar errado. Os arrozais poderiam ficar com excesso de água e isso acarretaria certos problemas nas colheitas. Mesmo que isso tenha acontecido de uma forma inesperada, as chuvas não passaram de 2 dias na região das plantações. Não afetou consideravelmente o plantio e nem a colheita dos cereais. Com a pausa das chuvas e o retorno da rotina do vilarejo, todos voltaram aos seus velhos costumes.
Enquanto as mulheres organizam as trouxas de roupa para serem limpas próximo ao lago que fica ao lado do vilarejo, os homens se preparam para irem até as áreas de colheita de arroz para ver qual o estado que o plantio está.
Murai, um senhor com já alguns anos apresentados em sem rosto e pouca força ostentada por um grande pedaço de madeira que o ajudava a caminhar, foi até a casa de Raiden. Um grande amigo que sempre fez parte do grupo de ajudantes da colheita de arroz. Pisar a frente da casa de Raiden o traz grandes lembranças de vários momentos de felicidade que sempre tem nessa época, pois a cada safra é uma nova conquista tanto para ele quanto para o vilarejo.
Um pequeno sino ficava ao lado da porta de entrada, uma forma simples mas eficaz de avisar da chegada de alguém à residência. O som do sino ecoa dentro da casa humilde de Raiden. Murai acha incomum o som não ter resposta pois sempre que o fazia uma das netas do amigo ia até a entrada, só que dessa vez não aconteceu o que esperava. Com o chamado sem resposta, ele segue o caminho até dentro da casa ao clamor do amigo.
O genkan, a entrada principal da casa, estava em ruínas. Todos os itens ali encontrados estavam em pedaços ou jogados ao chão, ele tira os zoris e segue pela casa. Os fusuma, painéis que fazem as separações de cômodos, estavam danificados. Grandes rasgos e algumas manchas negras se destacavam entre um cômodo e outro. Ao fundo, era possível ver um corpo.
Murai busca um pouco de coragem e segue pelo grande corredor de aposentos. Ao chegar lá ele vê uma imagem que quase o faz desmaiar. A filha mais nova de Raiden, Mairin, estava morta. Sem um dos braços e todo o seu dorso aberto, alguns de seus órgãos para fora do corpo como se algum animal tivesse iniciado um
desjejum do corpo da garota, mas havia parado no meio da refeição. Alguns dos órgãos ainda expeliam sangue pelos cortes como se o possível ataque do animal tivesse acontecido há pouco tempo. Com tal cena tão forte e sua idade já avançada, Murai acaba desmaiando ao lado do aposento.
Algum tempo depois, o velho acorda não acreditando no que poderia ter acontecido com a família de seu amigo. Com uma grande poça de sangue ao redor de Mairin, ele se levanta e puxa as últimas forças de seu corpo já velho e cansado e busca ajuda de alguém da milícia do vilarejo.
Seus passos rápidos e fortes levantam grandes parcelas de águas. Unido a esses movimentos, sua yoroi fazia alguns barulhos que se tornavam até irritantes para quem estivesse ali próximo. Talvez pudesse ser o pouco cuidado que tivera com a armadura ou o desgaste de tempos de combate que teve em seu passado.
Apesar de ter a seu lado sempre uma katana bem desgastada e sua yoroi levemente manchada, sempre tentou demonstrar ser alguém que defende a aristocracia imperial ou até mesmo alguém pronto a defender a honra ou costumes locais, só que as manchas dos tigres não podem ser apagadas. Seus ótimos movimentos com a katana nem sempre são representados da forma correta pelos seus trejeitos ou pelo seu modo de agir. Por mais que tente esconder isso das outras pessoas, Kiroh não tem porte de alguém realmente importante e nem mesmo um indivíduo que tenha tido algum contato com pessoas da aristocracia imperial.
A cada passo que dá em direção ao vilarejo mais próximo, sua fome urra em seu estômago já dolorido de tanto gritar por alimento. As pernadas aceleram mais e mais a cada metro que chega próximo ao vilarejo, mas algo tira a sua atenção próximo ao caminho que percorre.
Uma grande área de grama pisoteada com algumas manchas vermelhas espalhada bem aleatoriamente faz com que Kiroh pare seus passos. Sua respiração para por um instante. Sua fome desaparece junto. Com alguns movimentos rápidos chega até o local, com uma voz em sua mente que de alguma forma tenta tirar a maldição do local.
Tira a suas luvas e o elmo, consequentemente tira a máscara que cobre o seu rosto para que possa analisar melhor os vestígios encontrados na área amaldiçoada a sua frente. Revira a grama, a areia e as pequenas gotas de orvalho da manhã que ainda permaneciam nas folhas por ficarem um pouco escondidas da luz do sol.
A cada interesse analisado naquela área, Kiroh tinha uma nova perspectiva do que poderia ter acontecido. Algum urso pode ter sido atacado por alguns lobos.
Improvável… Não havia matilhas de lobos ou até mesmo ursos naquela região.
Depois de uma longa avaliação do local, foi descoberta uma trilha que leva ao leito do rio que passa ao lado do caminho que seguia até o vilarejo. Talvez por causa da chuva ou por causa do
vento, as folhagens cobriram o início dessa trilha. Nela é bem demarcado um rastro de sangue que levava até a margem.
Seguindo em frente, um corpo é encontrado em partes separadas por toda a beirada da corrente da água. Novamente o urso vem a sua mente, mas logo é descartada a possibilidade de um ataque de urso na região. O sentimento de angústia se torna maior, pois as partes que podiam ser vistas eram de membros pequenos.
Seu estômago vazio embrulha ao ver a cena, a passos tortos cambaleia e tenta sair o mais rápido dali. Algumas pisadas no vazio e um bocado de movimentos errados fizeram com que a caminhada de volta a trilha fosse mais difícil do que pensara. Coloca suas mãos nos joelhos e toma uma grande quantidade de ar que pensara ter deixado para trás enquanto corria.
De volta ao caminho e com a inesquecível lembrança que sua barriga estava carente de alimento já fazia alguns dias, apertou o passo e seguiu até o vilarejo. Mas a lembrança do corpo infantil em pedaços fez com que a fome diminuísse um pouco.
O vilarejo de Kungyi (que dificilmente seria considerado um vilarejo, pois só existia uma rua central que levava da entrada ao pé do monte Jangsan) era muito bem dividido. A entrada ao Sul, geralmente feita por viajantes, era como um portal de boas-vindas para quem era de fora. A saída ao norte era dividida em dois caminhos: a esquerda que levava até o monte Jangsan e a direita que levava aos arrozais que mantinham a economia local. O vilarejo só era visitado por pessoas que realmente queriam ir até os arrozais ou ao monte.
Quase ninguém do vilarejo (ou até mesmo pessoas de fora) usava o caminho do monte, isso era bem visível pela grande quantidade de relva e o pouco cuidado que se tinha daquele rumo que direcionava ao pé da montanha.
Logo depois da passagem da chuva, o ritmo do vilarejo parecia ter aumentado consideravelmente. Os dias de tempestade leve fez com que a colheita atrasasse em alguns dias e isso acarretou em alguns problemas no comércio local com as vilas próximas e arredores.
Kiroh por mais que quisesse gritar aos quatro cantos da vila sobre o ocorrido, a fraqueza e fome que sentia não deixava dar mais um passo mais forte. Sua primeira ação dentro do vilarejo foi ir até algum local para se alimentar e descansar o corpo. A sua yoroi com o elmo e máscara já pesavam toneladas em seu corpo.
Se senta em uma Izakaya, pede um saquê e a refeição que suas poucas moedas poderiam pagar. A comida não é das melhores, mas naquele momento o que realmente precisava era comer algo que pudesse manter o seu corpo em pé.
Enquanto se delicia com uma grande quantidade de bolinhos de polvo, o arroz local e molho de raiz forte, escuta um burburinho de alguns senhores que estão ao seu lado. Falam de uma família que fora morta por algum animal durante os dias de chuva. Aquela conversa faz com que a lembrança da criança volte a sua mente e seu estômago revire um pouco. Uns goles de saquê fazem com que as lembranças se vão rápido.
Se alimentar com uma máscara que cobre o seu rosto sempre é algo irritante e necessário para alguém que quer manter a identidade às escuras. Isso é algo que acaba atraindo olhares de curiosos, e isso era exatamente o que Kiroh não quer a nenhu custo. Olhares de canto de olho sempre foi algo que tentou evitar, não importando o lugar, e dessa forma tentou acomodar a katana em seu cinto e suas luvas em suas mãos para que saísse logo daquele local onde miravam a todo momento para sua pessoa.
As moedas foram deixadas na mesa junto ao copo onde bebera o saquê e ao Owan em que foram depositados os bolinhos. Com um pulo, levantou-se rápido para que o resto das pessoas que estavam ali não tivessem mais assunto. Mas logo ao chegar perto da porta um menino aponta em sua direção e grita a plenos pulmões:
– Foi ele que estava no rio…
Em nenhum momento passou pela sua cabeça puxar a arma para uma criança (principalmente depois do que tinha visto no rio), mas o susto que tomou naquele momento foi quase instintivo para que sua mão fosse acabar no cabo da katana.
Ao lado do garoto haviam 3 samurais que cuidavam da vila. Todos, ao ver o movimento de Kiroh até o cabo da espada, fizeram o mesmo. Quatro pessoas com a mão em suas armas e um garoto parado no meio delas. Todos que estavam no Izakaya se viraram para a porta. A senhora que servia dentro do estabelecimento começa um misto de choro e grunhidos de porcos para pedir que não destruam o local.
Enquanto a senhora chora e vai até o lado de Kiroh, sua espada sai rápido de sua bainha e bate com o cabo na porta do local. Com o movimento de Kiroh, os samurais puxam suas armas e tentam atacar ao mesmo tempo, sua mobilidade é muito rápida. Durante o ataque dos samurais, Kiroh faz um giro e desvia deles, com isso, sai do lado oposto de onde sua arma fez o movimento. As armas dos samurais ficam presas a madeira do chão e isso fez com facilitasse a sua saída pela única rua da vila.
Correr com yoroi não é nada fácil. Os olhares das pessoas seguiram seus passos por todo o caminho. Os mesmos olhares dos quais sempre tentou fugir, os olhares que sempre fizeram julgamentos. Não suportava os olhares, nem mesmo o próprio.
A cada passo dado, a dúvida do porquê ninguém seguiu sua pista, mesmo depois de enfrentar os samurais ou, até mesmo, de não mostrar o rosto, em um local onde todos procuravam um pequeno espaço em sua máscara para tentar saber quem estava por baixo daquele disfarce.
Seguir pelo caminho por onde nenhuma pessoa andava parece ter sido uma boa escolha. Apenas a mata e vento estavam a seu lado. Os vestígios causados por suas pegadas quase não eram vistos pelo excesso de mata. Até o ar que entrava e saia dos pulmões pareciam mais limpos, uma demonstração de que quase ninguém pisava naquela parte da floresta. Seus passos diminuíam a cada metro que andava, mas após algum tempo no matagal, ouviu algumas vozes dos cidadãos da vila.
Pernadas mais rápidas para a parte mais densa da mata afasta cada vez mais as vozes, sempre em alerta para saber a direção que estão tentando perseguir. De tempos em tempos, dava uma breve parada para tomar fôlego e continuar a corrida e também para saber a distância que tinha dos perseguidores. Sentindo que o fôlego estava cada vez mais difícil e o cansaço se tornava um gigante que crescia a cada metro, Kiroh resolve tentar a última alternativa, se esconder no monte Jangsan.
Uma breve caminhada até a entrada de uma gruta, uma abertura natural que levava para dentro da montanha. Um grande corredor quase que moldado dentro da montanha direcionava até uma parte onde ficava mais estreita a passagem, esse acesso guiava o caminho de forma espiral até a parte inferior central da montanha. Uma caminhada fácil, grande parte dela tinha uma inclinação pouco variada. Uma das coisas mais impressionantes era que a gruta dentro da montanha não era escura. Luzes vindas de fendas de dentro da montanha eram refletidas por espelhos naturais e ampliadas dentro do monte.
Kiroh tem um momento de dúvida, como espelhos naturais eram feitos ali dentro da montanha?
O eco do local direcionava para uma área que poderia ser um rio dentro do monte, o ruído de movimento fluvial fez com que seus passos aumentassem rapidamente e ele segue o que parece o rio que passava ao lado da vila. Poderia ser uma saída fácil e uma fuga menos problemática.
Um pouco antes do que parecia ser uma abertura por onde se escutava o barulho do rio se movimentando, uma grande área com uma enorme quantidade de espelhos de tamanhos variados unidos à luz natural fazia com que essa área fosse a mais iluminada da montanha. A ressonância das pedras sendo pisadas era tempestuosa, mais pela solidão que aquele lugar trazia junto ao barulho da água.
Ao chegar no centro do local onde ficam os espelhos, Kiroh percebeu que algo estava seguindo os seus movimentos. Quase de imediato, puxou sua katana em direção à entrada, já à espera de pelo menos 4 samurais que iriam entrar em combate ali mesmo. Mediu o tamanho do local e criou uma estratégia de combate para que, pelo menos, pudesse tentar sobreviver, pois ainda não sabia a altura da queda até o rio.
Com um giro completo em torno de si, não encontrou nada que pudesse demonstrar risco a sua vida. Manteve-se em alerta, mas nada aconteceu ao seu redor. Com um suspiro, se vira novamente para a abertura na montanha, a saída que levaria até o rio.
Um golpe de surpresa em seu ombro direito faz com que caia no chão.
Um gigante tigre com uma cobra no lugar de calda jogou o corpo de Kiroh o mais longe possível da saída da gruta. Antes de rolar para o lado para tentar evitar algum ataque do animal, Kiroh tenta o analisar melhor. Ele parecia ter o dobro da altura de Kiroh, consequentemente, uma de suas enormes patas conseguiu rasgar as placas de sua yoroi.
Com um gesto rápido, puxou sua katana e foi para cima do tigre. Agora em pé, não parecia tão grande, mas mesmo assim demonstrava poder e força muito superior do que Kiroh. O animal corre na direção oposta e pula dentro de um dos espelhos. O que fez a espinha de Kiroh gelar.
Mais um golpe forte, dessa vez em suas costas. O golpe é preciso, de cima para baixo, visando sua cabeça, mas seu elmo protege da investida que só acerta no mesmo ombro que ferira anteriormente. Agora sua armadura do lado direito estava em frangalhos, além de seu elmo estar partido. O tigre novamente salta para outro espelho, enquanto se movimenta é possível ouvir:
– Minha preferência é por carne feminina…
Por detrás da sua máscara, Kiroh solta um leve sorriso. Agora não precisa mais se esconder.
Ela retira o seu elmo quebrado, faz uma prece rápida ao Deus da Honra e prepara-se para um combate em que apenas um dos dois sairá vivo.
Ele sai por um dos espelhos já com uma das patas ao alto e a descendo em direção de Kiroh. Ela, já preparada para um golpe mortal do animal, se abaixa e, com uma investida de baixo para cima, corta sua jugular; Ao mesmo tempo, porém, a pata do tigre chega a tempo de atravessar a parte da armadura que havia sido quebrada. Uma de suas unhas entra pelas costas e penetra em seu pulmão.
Cada um vai parar em uma parte do local cheio de espelhos, o tigre vai cambaleando para um dos espelhos enquanto ela fica cai perto à saída que leva até o rio. O tigre segue em direção de um dos espelhos e some ali dentro. Kiroh prende a respiração e remove a unha que fica presa em suas costas. Quase sem energia, ela vai até o buraco e cai, sem olhar onde seu corpo pode vir a desabar.
Com o pouco de força que ainda lhe resta, ela tenta não morrer afogada com a correnteza do rio que a leva cada vez mais longe da montanha, com grande dificuldade tanto pelo peso de sua armadura quanto pelos machucados da batalha que acabara de ter.
Com um estalo, ela acorda dentro em uma carroça sendo levada de volta ao vilarejo. Sua armadura foi retirada para que ataduras fossem colocadas para estancar o sangue que não parava de querer fugir de seu corpo.
Ao seu lado, as partes que ainda sobravam de sua armadura, próximas a sua katana. que lhe foi de grande auxílio. Além disso, uma grande unha, que talvez tenha ficado presa em sua yoroi durante a batalha.
Uma chuva leve começa a cair enquanto a carroça pula e quica nas pedras do caminho, com grande dificuldade de respirar, ela tenta encontrar uma forma de ficar mais confortável lá dentro, apesar das dores.
Os chuviscos em seu rosto são finos, leves e mais agradáveis, logo a fazem lembrar que agora ela não precisa mais escondê-lo de ninguém.
Escrito pelo nosso amigo Douglas Dias.